cronologia dos autores

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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

«Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados.»

«Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua, até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado.» Manuel da Fonseca, «Campaniça», Aldeia Nova (1942)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

«Campaniça», de Manuel da Fonseca: cante da terra larga e ruim

     O arranque: «Valgato é terra ruim.»

     Conto inaugural de Aldeia Nova (1942), o primeiro livro de narrativas curtas de Manuel da Fonseca.  História de frustração colectiva no isolamento que o lugar de Valgato oferece aos seus habitantes: o horizonte intérmino da charneca, a vontade, raramente cumprida de desandar.

     Horizonte geográfico e horizonte existencial, pois a vastidão é como cárcere:
     «Aí está porque não é difícil um homem perder-se na charneca. É tão igual e monótona, rasa para todos os lados e para todos os lados deserta, que só o tino e, como diz o Venta Larga, o cheiro, são capazes de orientar. Para que serve ver? Anos e anos a olhar o descampado, os olhos cansaram-se de ver sempre o mesmo. A vista dos homens de Valgato é um sentido embotado. Há uma névoa cobrindo-a, mesmo de dia com o céu esbranquiçado e o lume do Sol tremendo no ar. E sem ver, ainda a manhã vem do outro lado do mundo, os homens, certinhos como a mula do Zé Tarrinha, andam léguas e léguas e vão dar às herdades. E de noite, sempre de noite, tornam para a aldeia, certos e direitos, com os olhos cegos do sono que volta. certos e direitos que um homem não precisa mais que saber onde põe os pés.»  
     Os autómatos da campina.

     Se a terra prende, a vida aprisiona. Que o diga a porqueira Maria Campaniça, desde nova sugestionada pela estória do Zé Gaio, partido sem regresso, e que antes de se juntar com o Baleizão, com ele alimentara a aspiração de deixar a terra, até à parição do rancho de filhos, que lhe matam o sonho:
     «Uma noite, Maria Campaniça sonhou que era velha e morria sem sair de Valgato. Foi e contou à mãe. O rosto encarquilhado da velha franziu-se ainda mais na sombra do lenço: 
     -- Que parvidade, moça! Então onde haveras de morrer?» 
     Soco no estômago.

     E daqui não há como expurgar a frustração, a inveja dos que abalaram e não mais se soube deles; ou daqueles seres humanos parecidos com os aldeãos mas extraterrestres, que surgem sem avisar e partem para destinos dificilmente suspeitados:
     «Uma tarde, já sem sol, quando os homens vindos da faina desciam das cristas dos cabeços, notaram que havia qualquer coisa de estranho em Valgato, Estugaram o passo. E perto olharam inquietos, poisando de leve as enxadas no chão. 
     Era uma forma de mulher com um vestido azul, colado, desenhando-lhe a carne. E tinha a boca vermelha e os olhos azuis e os cabelos loiros. Sorria. E andando oscilava as ancas torneadas, vivas, no vestido azul. E os seios tremiam a cada passo e levava os olhos de todos os homens de Valgato presos nos cabelos loiros, nas ancas e nos seios.
     Depois, viera um senhor, dono das terras do vale, e a mulher partiu com ele, num carro, pelo melhor dos caminhos que sai de Valgato e a léguas dali entra na estrada real.
     Os homens continuaram indecisos, com os olhos voltados para o cabeço por onde a mulher desaparecera. Só acordaram com as palavras da velha Carrasquinha. A velha dizia que aquilo fora uma aparição...
     -- ...Foi uma santa!
     Entrou em casa, tirou do fundo da arca uma estampa e voltou.
     -- Olhem se foi ou não foi!
     Todos olharam. Era uma Nossa Senhora vestida de azul, com os cabelos loiros abertos ao meio.
     Os homens ficaram mais tristes que nunca. E, nessa noite, cantaram tão desgraçados como os presos às grades de uma cadeia.»
     O desespero dos excluídos da alegria, espécie de bichos com sentimentos, gado que ia à mão fechada dos terratenentes, a vida em modo de cabra, que só liberta acabando.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

BALZAC, de Jaime Brasil [1966]

     O arranque:«O fenómeno Balzac é um quebra-cabeças para quem conhece a vida do escritor e lhe lê as obras.» 
     Livrinho de 42+6 páginas, certamente a introdução geral à monumental edição de A Comédia Humana, que a Portugália Editora começou a publicar em 1966, sob a direcção de José da Cruz Santos. O opúsculo é uma jóia, e bem merecia uma reedição, pelo estilo sedutor de Brasil, pela sua notável concisão. A capa, com uma foto da perturbante escultura de Rodin, erigida no Père Lachaise, reenvia-me para outra excelente biografia de Jaime Brasil, sobre o artista de O Beijo, texto de maior fôlego, escrita na Paris já sob ocupação (conspirador anarquista, a fuga para Portugal, em 1941, terá como consequência a prisão, episódio de que falarei noutra altura, a propósito doutro livro).
     A dualidade homem-artista vai ocupar as primeiras páginas. O contraste entre o saco de carne, ossos e vísceras (e vícios) e o génio criador levou Brasil a escrever: « [...] O artista é um instrumento, irresponsável pela tarefa que executa. Não tem nenhum mérito em realizá-la. Obedece a um imperativo que lhe é exterior. O génio é uma excrescência no homem, como uma neoplasia.  Não se sabe de onde vem. Não é inato no indivíduo. Surge em determinado momento da vida, misteriosamente. Tem intermitências: obras geniais alternam com outras medíocres do mesmo autor.»
     Repare-se na arrumação destes períodos: frases curtas e lapidares denunciam a um tempo o jornalista experiente na comunicação com um público vasto e um autor de fortes convicções.
     Quanto à origem do génio, talvez não seja despropositado acrescentar que os indivíduos que -- ultrapassando ou não condicionalismos de partida que os destinariam à mediocridade -- se alçapremaram a uma posição única, pelo que representaram no seu tempo e que de alguma forma lograram a imortalidade, são produtos de uma aleatória transmissão genética; porém, parece pacífico que tanto a inteligência como a sensibilidade se potenciam nos primeiros anos de vida, aguardando apenas a oportunidade de eclodirem naqueles que o acaso -- biológico e biográfico -- bafejou.

     Jaime Brasil, Balzac -- Escorço da complexa personalidade do autor de A Comédia Humana, Lisboa, Portugália Editora [1966].