cronologia dos autores

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domingo, 31 de janeiro de 2021

«Eurico o Presbítero» 9. Premonições


continuar: «O sono ou a vigília, que me importa esta ou aquele? As horas da minha vida são quase todas dolorosas; porque a imaginação do homem não pode dormir.»

Madrugada de 8 de Abril de 711, no presbitério Eurico lança ao pergaminho a premonição que o assaltou, vinda da costa de norte de África. Mas primeiro a evidência do contraste entre a noite do povo simples, e a sua, poeta ilustrado -- uma reflexão em que Herculano entra de novo na personagem: «Para o povo ignorante e ìmpiamente crédulo, a noite é cheia de terrores; em cada folha que range na selva ele ouve um gemido de alma que vagueia na terra: [...] / Mas quando jaz no leito de repouso, o seu dormir é tranquilo. Ao cruzar os umbrais domésticos, esses terrores sumiram-se com os objectos que o geraram. A sua alma parece despir-se da fantasia grosseira, como o corpo se despe da estringe áspera que lhe resguarda os membros.» 

Depois, esse pesadelo em que da rocha do Calpe (que, ironia, viria a tomar o nome do invasor, Gibraltar, ou montanha de Tárique), vê o mar -- o elemento que tanto separava como era veículo de aproximação entre a Europa e a África -- estacar como morto: «Era horribilíssimo ver convertido em cadáver, de todo imóvel e mudo, o oceano; aquele oceano que mais de quarenta séculos nem um só dia deixou de revolver-se em torno dos continentes [...].» E de cada lado do continente nuvens formando-se em bloco, indo ao encontro umas das outras, prefigurando o recontro de dois exércitos, numa imagem portentosa e espectral:

«Então pareceu-me ouvir muito ao longe um choro sentido misturado com gritos agudos, como o do que morre violentamente, e um tinir de ferro, como o de milhares de espadas, batendo nas cimeiras de milhares de elmos.»

A premonição de um castigo divino lançado por Deus aos decadentes visigodos, tal como séculos antes os hunos -- o outro sempre visto como o anticristo, que em certa medida o era de facto: «Contam-se coisas incríveis desses povos que assolam a África, chamados os Árabes, e que, em nome dum crença nova, pretendem apagar os vestígios da Cruz.»

cap. VII, «A visão», pp. 46-51

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

«Eurico o Presbítero» 8. - Um homem aniquilado



Continuar: «O mar estava tranquilo, e o ar puro e diáfano. As costas de África fronteiras, lá na extremidade do horizonte, pareciam uma orla escura bordada no manto azul do firmamento.»

Abril de 711. O refúgio em si, ao largo da bacia de Algeciras, na embarcação de Ranimiro, pretexto para, mais uma vez, acentuar a diferente sensibilidade entre as almas simples, como a do barqueiro, e as inquietas, como a sua, Eurico, poeta e guerreiro feito sacerdote.
«Bem-aventurado, pensei eu comigo, aquele em que os afagos de uma tarde serena de primavera no silêncio da solidão produzem o torpor dos membros; porque nessa alma dormem profundamente as dores no meio do ruído da vida!»
Saudade de Hermengarda e do amante arrebatado e sincero que foi; revolta e despeito contra ad-os que lhe preteriram a pureza à linhagem e ao pecúlio; e contra a própria amada e o pai desta, que a prostitui honradamente.
«Porque mulher bárbara não entendeu o que valia o amor de Eurico; porque velho, orgulhoso e avaro sabia mais um nome de avós que eu, e porque nos seus cofres havia mais alguns punhados de oiro que nos meus.»
Desespero sem remissão: esquecer é uma impossibilidade, a escapatória é uma espécie de "suicídio": mais do que o tomar ordens, haverá outro modo de se aniquilar, nas graças de Deus.

cap. VI, «Saudade», pp. 38-45

domingo, 24 de janeiro de 2021

«A CATEDRAL» 4. - espírito e carne

Continuar: «Entretanto iniciavam-se na Sé as obras de restauração.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920), pp. 41-78 da minha edição.

As obras põem a Sé em polvorosa, desagradam aos mais velhos e a própria Helena de Monforte fica angustiada ao ver a capela de família intervencionada. Em defesa daquele «ateu», daquele «doido», daquele «Átila de camartelo» vem o padre Anselmo, o jovem musicólogo. Num domingo, durante a missa, a condessinha tem uma espécie de revelação, que a leva a questionar a sua desconfiança ou má-vontade para com o trabalho de Luciano: 

«Nesse domingo, porém, uma surpresa durante a missa causara-lhe estranha emoção. Tinham acabado de aparelhar a rosácea do cruzilhão norte. Desarmado o andaime e o tapume envolvente, a admirável rosa de pedra reabria, inteiramente nova, no fino talhe românico, com o desabrochamento radial das nervuras emoldurando pétalas de luz. Maria Helena erguera os olhos e ficara em êxtase deslumbrada. Como aquilo fora não sabia. Donde a linda rosa viera, ignorava-o. Como ela abrira lá no alto, mistério. mas lá estava, a mágica túlipa esplendorosa, fresca e vicejante, reverberando na sombra doce da nave as palpitações multicores do seu coração incendiado.»

Será quando visita furtivamente, na companhia do padre Anselmo, que fala demais, a sua capela, consagrada a Santa Cecília, já objecto de restauro, porém inacabado, estando por isso o acesso vedado a todos -- será nessa ocasião que, ainda sem o saber (nem o leitor, de resto), Helena de Monforte se apaixona por Luciano. O narrador de Manuel Ribeiro dá-nos isso muito bem:

«Polvilham o recinto camadas de poeira branca e detritos finos de calcário. Na restauração fora refeita toda a ábside da capela. [...] A delicadeza alígera da  fenestragem sobressaía no fino talhe arredondado de molduras e nessa beleza inenarrável, verdadeiramente religiosa, do arco que foge à curva rígida e se quebra para a tocar furtivamente, na graça dum beijo casto trocado a medo por dois amantes. / O rubor incendiara o rosto de maria Helena. Aquilo era por ela e para ela...»

É interessantíssima a forma tão estilisticamente dúctil com que o narrador discorre  sobre os pormenores técnicos e decorativos do edifício, tornando uma matéria árida, porque técnica, num discurso fluente; e também a erudição e o deleite nas referências à patrística e à história monástica. Não é de admirar que a conversão estivesse a germinar e a desenvolver-se em Manuel Ribeiro, um ano antes de ser um dos cofundadores do PCP.

O único senão deste capítulo para o leitor comum é a longa explanação da história do monaquismo e dentro dela da Ordem de São Bento, pelo simpática tagarelice do padre Anselmo, levando-o a perder as CompletasCapítulo que termina um pouco precipitadamente com a descrição física de Helena e uma flechada cupidinosa bem desferida:

«Luciano viu-a marchar no lajedo, alta e tenra, espiritual e fina, numa harmonia de linhas que traía a raça. O busto evasava-se-lhe em curva harmoniosa de ânfora a que dava deliciosa frescura o corpete de cetim claro dobrando-se em gola no colo, sob o casaco tailleur, numa graça vegetal de gamopétala. E, despedindo-se dos seus amigos, a fidalga já no trem, sublinhou um último cumprimento a Luciano, num tão eloquente sorriso, que o artista sentiu a alma fundir-se-lhe de ventura...»


domingo, 10 de janeiro de 2021

«Eurico o Presbítero» - 7. o dantes e o hoje




continuar: «Mais de sete séculos são passados depois que tu, ó Cristo, vieste visitar a terra.» 
Ao contrário do que sucedia com os romanos corrompidos por séculos de domínio civilizacional, o coração dos godos estava aberto a receber, nesse século IV das Invasões Bárbaras, os ensinamentos de Cristo, como os da liberdade, do amor e respeito pela mulher, o esforço e o trabalho; agora é a vez de os mesmos visigodos, perdidas essas virtudes pelas elites, se prepararem para um novo e violento ímpeto que se avizinha, sentido nesse Dia de Natal de 748 [710]. O presente horroriza.
O tom de litania reitera o do capítulo anterior, e ao poeta, diante da triste realidade que se lhe acastela diante dos olhos, Eurico anseia pelas trevas que a ocultam: «Pela escuridão da noite, nos lugares ermos e às horas mortas do alto silêncio, a fantasia do homem é mais ardente e robusta.»
cap. V - «A meditação» (pp. 31-37)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

A CATEDRAL - 3. a 'condessinha' -


 Continuar: «D. Francisco Diogo de Pina Coutinho, 3.º marquês de Pombeiro e 5.º conde de Linhares, cujas genealogias entroncavam na mais antiga nobreza do reino, fora um dos grandes fidalgos portugueses que entraram, em 1640, na conjuração nacional contra o jugo de Castela.»  Manuel Ribeiro, A Catedral (1920) Início do cap. II, pp. 29-39 da minha edição.   


Capítulo que mostra as origens familiares de Maria Helena de Monforte, a condessinha. Os antepassados estiveram na Restauração, na Guerra da Sucessão de Espanha, contra os franceses nas Invasões, contra D. Pedro e com D. Miguel na Guerra Civil, cujo destino de expatriação partilharam. «Toda a história da sua casa era um pouco a história de Portugal.» É o pai de Maria Helena, D. Álvaro de Ataíde, que se retira de Paris, quando a República é implantada -- a primeira referência que permite situar no tempo a acção do romance. Morta a mãe, Eulália Zarco, filha dos condes de Borba, ainda jovem, deixando o pai na apatia, embora estremecendo a filha criança, esta será educada pelo capelão da casa materna, Monsenhor Santana, um tradicionalista, e por uma tia freira, madre Maria Peregrina, superiora de um colégio religioso entretanto encerrado pelo governo.

Uma educação para o exercício da autoridade e sentimento de superioridade dado pela estirpe, colide com o temperamento afável e bondoso da condessinha, que, fruto também da educação é dotada de um expressivo sentimento religioso, que pratica na capela de família, situada na charola da Sé de Lisboa. 

«Ela não era inteiramente como monsenhor pretendia. Maria Helena sentia-se realmente superior, não porque fizesse pedestal de alguém, mas porque pairava em um mundo de idealidades. Sua soberania não se alimentava de humilhações. Monsenhor fora talvez ludibriado. Em vez dos graves princípios brotando das sementes dos seus conceitos, irrompia da alma da condessinha uma flora tenra, suave, como seara de linho que se estrelava de flores azuis do sonho. A história aparecia-lhe sobre refrangências de lenda e os heróis sobressaíam nimbados em fundos de religiosidade. Ser vassalo da Igreja era prestar fidelidade ao bem.»

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

«A Catedral» - 2. a procura do risco definitivo

O capítulo inicial do romance põe em cena três personagens: o já citado Luciano, um jovem arquitecto de vinte e dois anos, interessado pela História da Arte e apaixonado pela Sé Catedral. Além de impetuoso e apaixonado pelo velho monumento, Luciano «desdenha[va] da profissão o utilitarismo interesseiro»; era, pois, um idealista. O parágrafo seguinte dá-nos o laço estabelecido entre o protagonista do romance e o enlevo pelo objecto da sua realização pessoal, e não tanto profissional:

«Luciano tinha-se deixado ficar à janela e contemplava, com alvoroço e flama estranha no olhar, a basílica que se erguia já doirada nos cumes pelo sol matutino.  Vista do ramo transversal do claustro e no prolongamento do eixo da igreja, a ábside desenrolava em frente do espectador a sua elegante redondeza, e o frémito alado dos arcobotantes, com a ossatura frágil em pleno equilíbrio aéreo, dava-lhe tal ar de vida palpitante, que era de recear que uma carícia mais quente do sol filtrando-se nos poros da pedra, a catedral abrisse as asas e erguesse o largo voo nessa lúcida manhã de tempo claro.»
Esta relação quase erotizada que o narrador descreve dá também a medida de como Manuel Ribeiro se envolveu com esta testemunha vetusta do tempo. O conhecimento minucioso de cada passagem do templo é-nos dado com uma leveza correspondente à delicadeza deste perscrutar sensível que empreendeu. A Sé fora vítima das injúrias dos anos e dos pseudo-restauros, e Luciano anseia por arrasar com toda a «beleza falsa», para tentar recuperar o risco original. 
O pai de Luciano era o cónego da Sé, Porfírio de Sampaio e Melo, uma figura prestigiada do clero, aristocrata de origem  tradicionalista, filho segundo destinado à vida religiosa, desiderato que cumpre, menos por vocação do que atinência a uma ordem estabelecida, cuja família é um dos esteios. O arquitecto é fruto de «amores com uma certa beata lasciva» que rejeita o rebento. É o pai que o acolhe e perfilha, embora para o mundo apareça como sobrinho.
Uma terceira personagem, o padre Anselmo, jovem musicólogo apaixonado pelo canto gregoriano, chegando a corresponder-se com a maior autoridade da época o monge beneditino André Mocquereau, da abadia de Solesmes, alguém que estabelece com Luciano um diálogo no mesmo comprimento de onda.
Há ainda uma alusão à protagonista feminina do romance, Maria Helena de Monforte, condessa de Borba, ou a condessinha, como se lhe referem, com uma devoção por Santa Cecília, cuja capela a família mantém há gerações.
Um concurso para restauro será aberto e Luciano, provavelmente por influência do cónego, será o escolhido.

Anarquista, comunista, católico. Manuel Ribeiro quando escreve A Catedral é um elemento minoritário, embora cheio de prestígio, na Confederação Geral do Trabalho (CGT). Está, aliás, em choque com a corrente mais apolítica (aqui entendendo-se como apartidária). Torna-se, assim, em 1919, a principal figura da Federação Maximalista Portuguesa, que irá originar, em 1921, o PCP. Em 1920 (não consegui apurar se antes ou depois de publicado o romance), Ribeiro estará preso na Cadeia do Aljube , do outro lado da rua da Catedral...


 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

«Eurico o Presbítero» - 6. elegias


Continuar: «Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trémulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.»

Prostrado com a decadência goda, o império do interesse próprio em vez do bem-comum, este breve capítulo tem por epígrafe uma frase do Memorial dos Santos, de Santo Eulógio de Córdova: «Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?», e evoca a glória de Teodorico I, rei dos visigodos, morto na própria batalha em que é derrotado "o flagelo de Deus", Átila o Huno  (541). Eurico escreve solitário no presbitério numa «meia-noite dos idos de Dezembro da era de 748» -- data de acordo ainda com a era de César (entre nós vigorou até ao reinado de D. João I) --, trinta e oito anos somados à actual era de Cristo. Fazendo a conversão, está-se pois no fim do ano de 710, que precederá a invasão muçulmana, cuja presença vigorará na Península Ibérica durante os setecentos anos a seguir.

Desgostoso da humanidade, Eurico remete-se ao convívio com a Natureza, expressão da criação divina: «Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sopro do vento, como o rugido do mar: / Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da terra quando ainda ela se chamava o caos. / Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o emurchecer. / E o vento e o mar viram nascer o género humano, crescer a selva, florescer a primavera; -- e passaram, e sorriram-se.»

Tudo é vão ante a criação. Mas, como que adivinhando o desastre próximo, Eurico consola-se na certeza da Piedade, irmã da Esperança, aquela que «nunca morre nos céus.»

 cap. IV, «Recordações», pp. 21-30