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domingo, 21 de março de 2021

da dignidade individual: A SELVA (1930)





O extremar de posições é-nos dado pelos preconceitos da personagem principal, Alberto, um estudante de Direito, monárquico insurrecto de Monsanto, e por isso exilado; e um conjunto de gente ignara, acomodada naquele «curral flutuante» e conduzida em pura inércia de sobrevivência, um pouco o que acontece com os rebanhos. Não por acaso as noções de fraternidade e bem-estar, palavras-chave das doutrinas de revolução social, aparecem ligadas neste contexto de animalização dos futuros seringueiros, contrário, por isso, à sua intrínseca dignidade de homens. Este conceito de dignidade, geral e individual, é fundamental em Ferreira de Castro.

O extremar de posições é-nos dado pelos preconceitos da personagem principal, Alberto, um estudante de Direito, monárquico insurrecto de Monsanto, e por isso exilado; e um conjunto de gente ignara, acomodada naquele «curral flutuante» e conduzida em pura inércia de sobrevivência, um pouco o que acontece com os rebanhos. Não por acaso as noções de fraternidade e bem-estar, palavras-chave das doutrinas de revolução social, aparecem ligadas neste contexto de animalização dos futuros seringueiros, contrário, por isso, à sua intrínseca dignidade de homens. Este conceito de dignidade, geral e individual, é fundamental em Ferreira de Castro.

«A sua epiderme contraía-se sob a força do asco que o convés imundo lhe causava. Sentia-se inadaptado, estranho ali, quase inimigo das vidas que o cercavam, aparentemente alheias a tudo quanto não fossem imposições do corpo e aderindo, resignadas, a todas as contigências.
Magoava-o a facilidade com que outros recrutados dormiam tranquilamente um sono que era, para o egoísmo dele, quase uma afronta.
E sorria, depreciativamente, ao pensar no apostolado da democracia, nos defensores da igualdade humana, que ele combatera e o haviam atirado para o exílio. «Retóricos perniciosos! Queria vê-los ali, ao seu lado, para lhes perguntar se era com aquela humanidade primária que pretendiam restaurar o mundo. Via-se o que tinham feito! Tudo na mesma, sempre a mesma violência, a demagogia até. E ainda havia os que queriam ir mais longe no desvario, destruindo fundo os caboucos sociais, desmoronando uma obra construída e cimentada pela velha experiência dos séculos. E para quê? Para quê? Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o Mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida colectiva a beleza e a elevação que ela podia ter? Se a possuíssem, se tivessem sensibilidade, não estariam adaptados como estavam àquele curral flutuante. Mas não. Mas não. Era o seu meio e, se as transplantassem, ficariam tímidas, desconfiadas e murchas, como bichos selvagens nos primeiros dias de jaula. Ele e os seus, declarados inimigos da igualdade, defensores de élites, eram bem mais amigos dessa pobre gente do que os outros, os que a ludibriavam com a ideia duma fraternidade e dum bem-estar que não lhe davam nem lhe podiam dar. Só as selecções e as castas, com direitos hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com autoridade inquebrantável -- um rei e os seus ministros a mandarem e todos os demais a obedecer. O resto era fantasia maléfica de sonhadores ou arruaceiros. (...)» (Cap. II, 32ª ed., pp. 46-47.) (15 de Julho de 2005)

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