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segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

«Campaniça», de Manuel da Fonseca: cante da terra larga e ruim

     O arranque: «Valgato é terra ruim.»

     Conto inaugural de Aldeia Nova (1942), o primeiro livro de narrativas curtas de Manuel da Fonseca.  História de frustração colectiva no isolamento que o lugar de Valgato oferece aos seus habitantes: o horizonte intérmino da charneca, a vontade, raramente cumprida de desandar.

     Horizonte geográfico e horizonte existencial, pois a vastidão é como cárcere:
     «Aí está porque não é difícil um homem perder-se na charneca. É tão igual e monótona, rasa para todos os lados e para todos os lados deserta, que só o tino e, como diz o Venta Larga, o cheiro, são capazes de orientar. Para que serve ver? Anos e anos a olhar o descampado, os olhos cansaram-se de ver sempre o mesmo. A vista dos homens de Valgato é um sentido embotado. Há uma névoa cobrindo-a, mesmo de dia com o céu esbranquiçado e o lume do Sol tremendo no ar. E sem ver, ainda a manhã vem do outro lado do mundo, os homens, certinhos como a mula do Zé Tarrinha, andam léguas e léguas e vão dar às herdades. E de noite, sempre de noite, tornam para a aldeia, certos e direitos, com os olhos cegos do sono que volta. certos e direitos que um homem não precisa mais que saber onde põe os pés.»  
     Os autómatos da campina.

     Se a terra prende, a vida aprisiona. Que o diga a porqueira Maria Campaniça, desde nova sugestionada pela estória do Zé Gaio, partido sem regresso, e que antes de se juntar com o Baleizão, com ele alimentara a aspiração de deixar a terra, até à parição do rancho de filhos, que lhe matam o sonho:
     «Uma noite, Maria Campaniça sonhou que era velha e morria sem sair de Valgato. Foi e contou à mãe. O rosto encarquilhado da velha franziu-se ainda mais na sombra do lenço: 
     -- Que parvidade, moça! Então onde haveras de morrer?» 
     Soco no estômago.

     E daqui não há como expurgar a frustração, a inveja dos que abalaram e não mais se soube deles; ou daqueles seres humanos parecidos com os aldeãos mas extraterrestres, que surgem sem avisar e partem para destinos dificilmente suspeitados:
     «Uma tarde, já sem sol, quando os homens vindos da faina desciam das cristas dos cabeços, notaram que havia qualquer coisa de estranho em Valgato, Estugaram o passo. E perto olharam inquietos, poisando de leve as enxadas no chão. 
     Era uma forma de mulher com um vestido azul, colado, desenhando-lhe a carne. E tinha a boca vermelha e os olhos azuis e os cabelos loiros. Sorria. E andando oscilava as ancas torneadas, vivas, no vestido azul. E os seios tremiam a cada passo e levava os olhos de todos os homens de Valgato presos nos cabelos loiros, nas ancas e nos seios.
     Depois, viera um senhor, dono das terras do vale, e a mulher partiu com ele, num carro, pelo melhor dos caminhos que sai de Valgato e a léguas dali entra na estrada real.
     Os homens continuaram indecisos, com os olhos voltados para o cabeço por onde a mulher desaparecera. Só acordaram com as palavras da velha Carrasquinha. A velha dizia que aquilo fora uma aparição...
     -- ...Foi uma santa!
     Entrou em casa, tirou do fundo da arca uma estampa e voltou.
     -- Olhem se foi ou não foi!
     Todos olharam. Era uma Nossa Senhora vestida de azul, com os cabelos loiros abertos ao meio.
     Os homens ficaram mais tristes que nunca. E, nessa noite, cantaram tão desgraçados como os presos às grades de uma cadeia.»
     O desespero dos excluídos da alegria, espécie de bichos com sentimentos, gado que ia à mão fechada dos terratenentes, a vida em modo de cabra, que só liberta acabando.

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