Artur Corvelo, o protagonista, que não sabemos ainda tratar-se de um arrivista, mas cuja melancolia do olhar e a brancura, dir-se-ia anémica da face, não anuncia nada de bom -- se atendermos às personagens queirosianas --, aguarda o padrinho na estação ferroviária de Ovar. O descritivo da luz e da cor, notoriamente naturalista, e o efeito que a paisagem provoca em Artur, denota uma sensibilidade estética -- quanto a mim mais do narrador que da personagem.
«Na estação havia apenas um passageiro, esperando o comboio: era um mocetão do campo, que não se movia, encostado à parede, com as mãos nos bolsos, os olhos inchados de ter chorado duramente cravados no chão e ao lado sentadas sobre uma arca de pinho nova, estavam duas mulheres, uma velha, e uma rapariga grossa e sardenta, ambas muito desconsoladas, tendo aos pés entre si, um saco de chita e um pequeno farnel de onde saía o gargalo negro duma garrafa.»
Um quadro realista de pura observação, um retrato dos simples,
«O rapaz magro esteve um momento raspando o chão com a bengala -- e foi andando devagar ao comprido da plataforma. Reparara agora no rapaz do campo, que supunha ia a Lisboa embarcar para o Brasil; e, sensibilizado pela face tão desolada da velha, ia pensando que o Emigrante seria um motivo tocante de poesia social: daria quadros de cor rica -- os vastos azuis do mar contemplados, as noites saudosas, longe, numa fazenda do Brasil, quando, quando a lua é muito clara e os engenhos estão calados; e aqui, no casebre da aldeia, os pais chorando à lareira e esperando os correios… Entrevia mesmo os primeiros versos:
Ei-lo que deixa o lar, a mãe chorosa,
Os verdes campos, o casal risonho…»
A burguesia provincial observa o povo; e apesar de o jovem emigrante ser uma das poucas personagens -- melhor se diria figurante, entrando daqui a pouco em discurso directo bem talhado --, das muito raras que não é motivo de irrisão, que não é caricatural, não podemos deixar de ver aqui um ligeiro esticar de lábios, não pelo emigrante mas pelo Curvelo. Era superior a si e também nisso era superior.
Eça de Queirós, A Capital! (c. 1878, póst., 1925) - edição crítica por Luiz Fagundes Duarte
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