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quarta-feira, 8 de julho de 2020

A BOCA DA ESFINGE, de Eduardo Frias e Ferreira de Castro (1924)


A Boca da Esfinge pertence ao grupo de livros que Ferreira de Castro eliminou da sua bibliografia, e o único escrito a quatro mãos. Foi publicado em Lisboa pela editora Aillaud e Bertand, em 1924.
Tal como em O Mistério da Estrada de Sintra se sabe o que é de Ramalho Ortigão por exclusão de partes, de tal modo é vívido o estilo de Eça de Queirós, também aqui o cunho castriano é assaz detectável.
Incipit e primeiro parágrafo.  «-- Quem o diria, Berenice?... Sim, porque quando tu nasceste eu já não era um adolescente: -- já tinha realizado aspirações, sofrido desilusões…»

Nem tempo nem espaço; apenas um discurso directo dirigido a uma personagem feminina, bastante mais nova. Entre ambos poderá haver uma relação amorosa, ou outra. Nome especioso, muito década de 1920 do século passado, anos loucos.
Apesar da co-autoria, não é difícil atribuir este parágrafo ao futuro grande romancista: a pontuação pouco convencional que Ferreira de Castro usava então, bem como o gosto magazinesco pelo nome incomum.
O primeiro capítulo, páginas 17 a 23, decorre num cais, certamente o de Lisboa, e a bordo de um navio transatlântico, por volta de 1920. As únicas personagens presentes são Mário de Albuquerque, homem de meia idade prestes a embarcar, rumo a um destino longínquo, e a sua amante, Berenice, de dezoito anos. A atmosfera é a de um transe de separação. Berenice surge como um estereótipo de animal sensual: «E via-lhe o corpo alto : -- a quem a seda indiscretamente revelava as formas : -- via-lhe o cabelo vagamente louro : -- que num anseio de liberdade se desgrenhava revoltosamente sobre o rosto : -- aquele rosto em os olhos verdes: -- glaucamente verdes : -- e o nariz ligeiramente adunco, eram apenas um pretexto para salientar os lábios grossos, vermelhos e húmidos : -- uns lábios por detrás dos quais vivia, como num covil, um desejo insaciável.» ; Mário, como um torturado: «Ele falava lentamente, tristemente, como se falasse de mortos muito queridos.»  A repetição do advérbio de modo é também muito comum em Ferreira de Castro neste primeiro período da sua vida literária, persistindo ocasionalmente em livros posteriores. Trata-se duma abertura desinteressante, muito marcada pelo romantismo da personagem masculina, toda atenta aos sinais, aos presságios, com um picante de devassidão: outrora, pela altura do nascimento de Berenice, Mário frequentava também o leito da amante do pai, provocando um sério conflito entre ambos.
Refracções - «Berenice continuava silenciosa : -- quase abstracta : -- os olhos pousados sobre o largo cais : -- esse cais que o sol crepuscular ia empalidecendo : -- e onde uma multidão invejosa ou saudosa dos que partiam, aguardava que o vapor levantasse ferro.» A luz, sempre a luz. E também uma alusão aos que ficam no cais, vendo os outros partir, com desenvolvimentos em Emigrantes, quatro anos mais tarde.
 Desinquietações: «E como a corroborar as últimas palavras da mulher, um criado passou pelo convés agitando uma grande campainha : -- miniatura de sino dobrando tristeza : -- avisando aos estranhos que estavam a bordo, que deviam abandonar o navio, porque este ia partir.» Uma extraordinária comparação da campainha do criado no convés, avisando as pessoas para se separarem -- os que vão e os que ficam (por quanto tempo?...) -- como um dobre a finados.

O estilo é alambicado, ao mau gosto magazinesco da época, muito longe da medida justa e viril de Emigrantes, aparecido quatro anos depois. Tanto postiço lembra, por vezes o Mário de Sá-Carneiro de A Confissão de Lúcio, insuportável. Salvam-se umas descrições, em especial dos efeitos da luz, que viria a ser uma espécie de imagem de marca de Ferreira de Castro e uma perspectiva cinética, que virá a desenvolver em obras futuras. E o mais interessante é saber que, para o fim da narrativa surdirá uma espécie de jacquerie contemporânea, evocando aquela que encontramos também na parte final de Húmus, de Raul Brandão, que Castro lera com atenção e sobre a qual escrevera.
Por vezes, umas figuras de estilo inesperadas: «Em baixo : -- no portaló : -- os marinheiros recolhiam a prancha : -- que acabou por desaparecer no flanco do vapor : -- como uma grande língua entre dois lábios negros.»
Dá vontade de continuar? Dá. Menos pela narrativa em si, como pelo facto de tratar-se de um outro Ferreira de Castro, menos consistente, embora as ideias sejam essencialmente as mesmas que depois veiculou nos livros da maturidade

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