cronologia dos autores

.

quarta-feira, 10 de março de 2021

«A Catedral» 5. um comunista a caminho da conversão


C
ontinuar: «Maria Helena passava agora, todos os dias, alguns momentos na catedral, em serviço do Apostolado.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920), pp. 87-116 da minha edição.

Um capítulo um pouco extenso, mas delicioso, em que sobressaem alguns aspectos muito relevantes. Comecemos por um parágrafo em que a descrição das obras na Sé nos dá a ideia de um trabalho num organismo vivo -- ou pelo menos não inanimado.

«Renascia a catedral. Todo o navio arfava no ritmo da vida. Mais do que nunca, a Sé parecia animar-se. A sofreguidão dos trabalhos, a azáfama das obras, a vibratilidade que parecia terem adquirido as estruturas íntimas sob o influxo restaurador, infundia tudo o sentimento da força a agir, do sangue a circular. A catedral vivia, palpitava, sentia, e isto revelava-se na epiderme nova dos silhares, nos tufos arbóreos das nervuras, nessa inesperada primavera da pedra que desabrochava pelos capitéis uma flora estilizada. A catedral vivia. E que admirar era que as catedrais vivessem? Não formavam o substractum de tanta vida decomposta, o resíduo dos seus artistas que até os corpos lhes haviam dado? Elas tinham, de facto, surgido das entranhas da terra, argamassadas com o seu sangue e caboucadas com os seus ossos, assim como as ilhas madrepóricas, que sobem do fundo dos oceano feitas dos cadáveres dos seus artífices...» 

O comunista e antigo anarco-sindicalista não esquece o factor trabalho, aqui iluminado pelo entusiasmo que o narrador empresta ao afã operário, como se trabalhadores e edifício participassem duma mesma célula.

Um outro aspecto, o da atracção que se vai desvelando entre Luciano e Maria Helena, esta que, transpondo inopinadamente o limiar da capela de família, vê-se retratada num capitel que aquele esculpia, com Luciano «só deseja[ndo] que o sorvesse o chão, que a catedral o tragasse.»:

«[...] uma deliciosa e adorável cabeça de mulher, reproduzida da máscara e de que ressaltava em medalhão a face, surgia, graciosa e grave, a expressão suave e melancólica, um ar antigo de santa. Reparando bem, parecia que a folhagem não era mais que uma imperceptível sequência da sua cabeleira ondulada que se bipartia na testa e inflectia delicadamente aos lados, até surgir gradualmente, na grinalda de miudinhas folhas.» 

Também para Luciano se dava a osmose do edifício com a vida, tal como sucedia com os trabalhadores. E aqui paixão e vida entranhavam-se: «Ele amava, amava Maria Helena nas formas artísticas da catedral.»

Mercê do seu trabalho diuturno e pelo facto de residir no sopé da catedral, e pela vontade de se aproximar da condessinha, percebendo-a e tentando decifrá-la na sua religiosidade, começa a interessar-se pelos ofícios litúrgicos. E é então que estudando, intuindo, compreendendo, tendo como (inconsciente?) coadjuvante o jovem padre Anselmo, que Luciano «começa a resvalar no pendor místico da religião». E as formas, os cânticos, os símbolos -- o «admirável jardim [...] litúrgico» -- começam na sua harmonia a interessá-lo, a conquistá-lo, como de resto haviam já conquistado o narrador, como se pode ver neste parágrafo:

«A álea [desse jardim] começava no Advento em fundos dominantes de violeta donde sobressaíam de longe em longe, os grandes lírios alvos dos confessores, as castas rosas brancas das virgens, os cactos rubros dos apóstolos e dos mártires. No tempo do Natal, tudo se decorava duma brancura láctea, tudo era branco, até a própria vigília da Epifania. Depois a paisagem reverdecia. Em breve, porém, o horizonte arroxeava-se, e a septuagésima passava violácea entre os maciços de goivos de Quinta-feira maior e a cinza trágica de Sexta-feira santa. Mas já no tempo pascal, a paisagem desentenebrecia-se, os tons amaciavam e o branco criador surgia de novo, galopava, polvilhava tudo de penas alvas. E outra vez reapareciam, do Pentecostes e o Advento, as largas manchas verdes, donde sobressaíam, de longe em longe, os grande lírios alvos dos confessores, as rosas brancas das virgens e os cactos rubros dos apóstolos e dos mártires...»

Se o ofício completo da missa o seduz como «uma refinada condensação de arte», o acto de orar apresenta-se-lhe como «atitude estética empolgante», sentimento reforçado pelo misticismo do seu interlocutor, o padre Anselmo para quem a oração periódica diária se reveste de uma indizível transcendência: «E há na vida ocupação mais digna, trabalho de mais apreço, de maior elevação espiritual que este culto ininterrupto ao grande Mistério que envolve o universo e a que só é indiferente a mais grosseira materialidade?»

Fosse pelo amor, fosse pela estética, fosse, ainda, por um preenchimento de um vazio interior, Luciano parece resvalar a passos largos para dentro da fé. E quando o jovem padre começa a explicar a Liturgia das Horas, com os cânticos que lhe pertencem, ao arrebatamento da música associada ao ofício divino, puro esplendor monacal, então é já o narrador que se vislumbra tocado pela Graça:

«-- Matinas é o cântico da noite, a hora que simboliza a adoração dos anjos e dos pastores a Jesus recém-nascido, e o início da sua Paixão na dolorosa noite do Horto. Luzem no céu as estrela e nem prenúncios de alva assomem no oriente. O invitatório e o salmo Venite exsultemus com que ele alterna em ritornelo, a seguir à doxologia, incitam os fiéis a que louvem Deus na alegoria dessa exortação dos anjos aos pastores ma messiânica noite redentora -- e são o prólogo dos três Nocturnos que chegam rolantes como batarias, guarda avançada dos salmos que vão desfilar pelo dia adiante. Apagados os ecos das três vigílias, que simbolizam as três vezes que Jesus se afastou dos discípulos para orar, quando foi preso, e as três etapas da lei religiosa -- patriarcal, mosaica e cristã, -- eleva-se aos domingos e nas festas de rito simples, o apoteótico cântico ambrosiano, esse rutilante Te Deum laudamus, que nimba o remate da hora com os primeiros raios de sol nascente.»

Recorde-se que Manuel Ribeiro dirigia o jornal bolchevique Bandeira Vermelha 


Sem comentários:

Enviar um comentário